“NENHUMA PISTA, NENHUMA PREVISÃO, NENHUMA PRÉVIA”: A REGRA DE JULGAMENTO DE RBG

Este quadro que pintei é do Domínio Público da Suprema Corte dos Estados Unidos, a imagem pertence ao povo. - Annalise Art

 

“Ao longo dos séculos, houve homens que

deram os primeiros passos em novas

estradas armados com nada além de sua

própria visão”, segundo Ayn Rand.

RBG, sem dúvida, está entre eles.

Em 1993, a juíza Ruth Bader-Ginsburg, ao ser aprovada pelo Senado para integrar a Suprema Corte dos Estados Unidos, estabeleceu a regra que acabou levando seu nome. Com a circunspecção que marcou sua carreira, ela disse que não pretendia dar “nenhuma pista, nenhuma previsão, nenhuma prévia” de como seriam seus julgamentos, que estariam limitados aos autos do processo, sem exceções. Levaria uma vida reservada e discreta.

Os debates sobre a indicação de RBG foram historicamente importantes, não apenas porque foi a segunda mulher a ser confirmada pelo Senado para a Suprema Corte, depois de Sandra Day O´Connor (1981), e antes da juíza Sonia Sotomayor, em 2009. Como também, porque, entre a aposentadoria de O´Connor, em 2006, e antes da chegada de Sotomayor, RBG foi a única mulher juíza na mais alta Corte dos EUA. Nesse período, e mesmo depois, seus votos, decisões e opiniões tornaram-se ainda mais dissidentes, e em cada julgamento ela se aliava mais à ala liberal, à defesa dos direitos humanos, das minorias, especialmente das mulheres.

Daí, foi um pulinho para se tornar um ícone do judiciário americano e da comunidade “cool”, passando a ser chamada de “Notorious RBG”.

Nascida no Brooklyn, filha de imigrantes judeus-russos, chamada de “KiKi”, sempre foi um bebê chorão. Desde cedo aprendeu os princípios da fé judaica que permitiu que falasse a língua hebraica com familiaridade. Foi sua mãe, forte e ativa, que a levou à biblioteca muitas vezes, na expectativa de que se tornasse professora de história no ensino médio. Contudo, RBG foi mais longe. Em 1954, graduou-se na Universidade de Cornell, com um diploma de Bacharelado em Artes. Em 1956, casada e com uma filha recém nascida, matriculou-se na Faculdade de Direito de Harvard, onde era uma das nove mulheres em uma classe de cerca de quinhentos homens. Indagada pelo Reitor sobre que justificativa tinha para tomar a vaga de um homem qualificado, RBG sugeriu que ele aguardasse, porque o tempo traria as respostas que procurava. Quando o marido foi transferido para um emprego em Nova Iorque, ela não desanimou e transferiu-se para a Universidade de Columbia, onde concluiu o curso de Direito, entre os melhores alunos da turma. Dali para frente, sua trajetória é já bem conhecida.

De tal sorte que, o “leitmotiv” aqui é, inicialmente, destacar a importância das audiências de confirmação no Senado dos EUA que, de fato, oportunizam que os americanos possam refletir, como nação, sobre o papel do juiz na sociedade. O que deve valer também de inspiração para os demais países do mundo.

Enfrentar o tema do “papel do juiz” na sociedade traz consigo a reflexão sobre quais critérios ou modelos os juízes podem utilizar ao julgar. Assim como, se existe um melhor ou mais indicado que outros.

Nesse sentido, a peça “Medida por Medida” parece ser a mais profunda reflexão de Shakespeare sobre o papel do juiz, e representa ainda hoje uma referência sobre o tema.

Na verdade, há séculos se discute sobre os métodos usados pelos juízes ao julgar, e três concepções principais (de julgar) se destacam.

Uma que valoriza excessivamente a “empatia”, levando à erosão do Estado de Direito. Outra que falha no sentido oposto ao privilegiar a “interpretação rígida da letra da lei”. Finalmente, a concepção que pressupõe que o ato de julgar é algo muito mais difícil e complexo do que qualquer um dos extremos, anteriores, indicaria.

A discussão sob qual a melhor concepção do ato de julgar, que já havia se adensado quando da sabatina de RBG no Senado americano, teve seu traçado melhor definido, e com mais nitidez, quando o Presidente Barac Obama, em 2009, ao defender a indicação de Sônia Sotomayor, declarou que, ao indicar os juízes, buscava neles o atributo da “empatia”[1]. Essa afirmação fez aumentar a temperatura das criticas da sociedade relativamente à conduta dos juízes nos EUA. O Senador Republicano Jeff Sessions, integrante do Comitê judiciário do Senado, afirmou que o critério da “empatia”, defendido por Obama, representaria um perigoso distanciamento do Estado de Direito. Segundo Sessions, “empatia”, para alguns, sempre significou preconceito contra outros.

“Medida por Medida” apresenta esses três modelos contrapondo-os entre si de maneira absolutamente brilhante.

Para Shakespeare, o primeiro método ou modelo de julgamento apresentado em “Medida por Medida” é o “cristão”, que tem origem no Sermão da Montanha: “não julgueis, para que não sejais julgados…a medida que tiverdes medido, vos medirão também… hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e, então, verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão”.

Nesse método de julgar, o “olho” é o instrumento principal de julgamento. Todavia, o julgamento habitual, feito só por meio do olhar, não revelará acertadamente o erro do outro, na medida em que uma trave no meu olho me impedirá de vê-lo.

O que Shakespeare nos diz em “Medida por Medida” vai no sentido de que o olhar não é suficiente, e o que realmente conta é o “insight”: preciso olhar para a sua “deficiência” e deduzir que a minha própria deficiência pode ser igual ou pior. Em vez de julgar segundo o que vejo, preciso sentir “empatia” pelo outro. A ética de julgamento, que tal empatia gera, é aquela do não julgamento, recordando a ideia de que, por sermos todos pecadores, nenhum deve atirar a primeira pedra.

O segundo modelo destacado em “Medida por Medida” é o da “ética da comensurabilidade” do Velho Testamento, na qual a punição é proporcional ao crime. Trata-se da lei de talião: olho por olho, dente por dente. Esse princípio de retribuição situa-se no extremo oposto do perdão.

O terceiro e último modelo é o pagão, originado na Antiguidade e guiado pela “temperança” de Aristóteles ou “o meio termo” de Arquimedes. Essa justiça conduz a resultados menos conclusivos do que as anteriores e exige mais intervenção e critérios humanos. Shakespeare chama essa forma ou método de julgar de a “via média”, a “medida por medida”, e a considera a melhor. O modo de julgar por “temperança” demonstra que nenhuma pessoa sensata desejaria viver em uma sociedade governada unicamente pela “empatia” ou pela “letra da lei”.

Como se vê, Shakespeare (1564-1616), na peça “Medida por Medida”, começou muito antes de nós os debates. O “insight” da peça deve servir de inspiração aos debates contemporâneos sobre o ato de julgar, sobretudo após a morte da juíza RBG, cuja compaixão e interesse pela paz social e de todos eram seus compromissos principais quando julgava e nortearam sua existência.

Voltando à RBG, é indubitável que deixa um legado no sentido de que, em um julgamento, nunca lidamos unicamente com “empatia” ou com o “Estado de Direito”, mas com valores concorrentes que precisam ser apreciados – o que ela fazia com maestria, imersa em um oceano de simplicidade. Um bom julgamento, segundo ela, exige moderação militante e contra-intuição permanente.

Sem dúvida, RBG entra para a história, não apenas do judiciário americano, como de todos os povos civilizados, onde reina o Estado de Direito. Para essa magistrada, nosso exemplar mais extraordinário de “human being”, o autoconhecimento é um atributo necessário para que se possa conhecer qualquer outra coisa, embora nunca suficiente para um bom julgamento. Aquele que tem neve derretida nas veias e jamais sentiu as vívidas picadas dos sentidos não pode ser um bom julgador. É, segundo ela, muito arriscado não conhecer o monstro que se esconde por trás de nossas barreiras internas quanto temos diante de nós a vida dos outros.

Sua maior lição?

Pois são muitas.

A mais oportuna é a de que a noção de “temperança”, ou “via média”, encaixa-se menos obviamente na tradição judaico-cristã do que nos ensinamentos da Antiguidade. Solução personalizada na figura representada pelo personagem “Escalo”, criado por Shakespeare, que não por acaso tinha seu nome associado à escada, graduação, medida, régua. “Escalo” e RBG teriam travado discussões memoráveis, se tivessem vivido na mesma época. Contudo, fica a lição maior quando se comparam os dois: Bem está o que bem acaba.

[1] Charlie Savage, “A Nominee on Display, but Not Her Views”. New York Times, 16 de julho de 2009 e do mesmo autor “Obama´s Remarks on the Resignation of Justice Souter”, New York Times, 1º de maio de 2009.