
Na infância com os livros de Monteiro Lobato, uma das fábulas que mais me impressionou é aquela de um cordeiro prestes a ser devorado por um lobo, enquanto bebia água.
O lobo, de início, inventa uma acusação absurda contra o cordeiro – este é que seria o malfeitor, por sujar a água que o lobo iria beber. Mas o carneiro responde com a lógica: “como posso sujar a água que lhe chega se estou num ponto mais baixo do rio?”
Segue o lobo inventando acusações parcas com as quais quer justificar a pena de morte do cordeiro. E este rebate cada uma com argumentos. Até que o lobo perde a paciência e diz “se não foi você, foi seu pai ou seu avô” e devora o coitado.
Esta fábula termina com “contra a força não há argumentos”. Mas eu nunca aceitei essa “moral da história”. Uai, o que cabia ao cordeiro fazer?
Creio que a essa altura já percebemos que a promessa de gozar um tipo de poder parecido com o do lobo fascinou uma parcela considerável da população. Essa promessa diz que é chegada a hora de resgatar uma ordem moral, ética e proba que se teria perdido, e diz que só um grande lobo é capaz de impô-la, pela força, a cordeiros desajustados em todos os sentidos.
Boa parte dos que acreditam na promessa não são lobos, são cordeiros a serem devorados, que se enxergam como lobos. Outros são realmente lobos, que andam revoltados com o fato de haver regras outras que dizem que a força não pode tudo.
Há, então, cordeiros que vinham buscando argumentar. Sobre como é errado devorar cordeiros simplesmente acusando-os de sujar a água. Mas como, a despeito disso, a promessa do lobo segue fascinando, subitamente os cordeiros já não se preocupam com o lobo.
Preocupam-se em dizer o que outros cordeiros estão fazendo de errado. Quanto mais fama tem o lobo, mais a culpa parece ser do cordeiro que disse “mas eu não sujei a sua água, eu apenas estou bebendo a minha própria água”.
Apavorados, alguns cordeiros pedem aos outros que não incomodem tanto o lobo. Talvez, se ele não ficar tão irritado; talvez se não for dito claramente a ele que os cordeiros acham errado serem devorados; talvez se convidarem o lobo pra comer capim só com uma gotinha de sangue de um carneiro… quem sabe assim fique tudo bem e o lobo amanse?
No fundo, o que esses cordeiros pedem é que tudo se permita ao lobo, para que ele não tenha que impor nada.
O que não percebem é que, se fizerem isso, já terão desistido de tudo.
Não percebem que “Contra a força não há argumento” é só uma parte da história. A parte que foi escrita pelo lobo. Ela diz “nem tente, não resista”.
Depois de um tempo, cheguei a conclusão de que a outra parte da história, a escrita pelo cordeiro, diz: “Contra a força SÓ há argumentos”.
Argumentos são a expressão da coragem de quem não aceita a violência e o arbítrio. E eles são poderosos – ou o lobo nem teria perdido tempo escrevendo a fábula. O lobo sabe que pregar a inutilidade da coragem é essencial para que o cordeiro se sinta sozinho, acuado, sem saída.
O argumento certamente não fará o lobo deixar de ser lobo. Mas tampouco a submissão à vontade do lobo fará isso.
A coragem de argumentar, por outro lado, é no mínimo uma dificuldade posta ao banquete do lobo.
E aí volta a pergunta: o que cabe ao cordeiro fazer?
A meu ver, a única resposta é conservar a coragem. Se são argumentos tudo o que temos, que sejam usados para reafirmar que a força bruta é injusta.
Não mudaremos o lobo. Talvez não mudemos nem os cordeiros seduzidos pelo lobo.
Mas o mais importante é que não mudaremos nós mesmos. No mínimo, nos apresentemos como um prato indigesto.
Seja como for, não seja você a criticar cordeiros por dizerem não ao lobo. Especialmente se você for um cordeiromacho, não se preste ao ridículo de achar que te cabe repreender a forma como as cordeiras expressam sua coragem. A culpa não é delas; a culpa é do lobo.
No final, lembre-se da grande diferença do nosso mundo para o da fábula: aqui, o lobo só ganha o ticket pro banquete se a maioria dos cordeiros achar que ele merece.